Você entra na internet, consulta sites de viagens e verifica os preços de um hotel, digamos, na Tailândia. Minutos depois, todas as páginas que você visita vêm recheadas de publicidades e informações sobre o país pesquisado, sobre hotéis, cruzeiros pela Ásia e passagens de avião.

A simulação acima é apenas um pequeno exemplo de como o usuário está inserido numa rede de informações em que ele é ao mesmo tempo sujeito e objeto. Como diz um antigo ditado norte-americano ligado ao mundo das finanças: não existe almoço grátis. A maior moeda de troca nos serviços baseados na web – principalmente nos gratuitos – são as informações coletadas de seus usuários. Empresas como a Google e o Facebook têm ferramentas no código de seus aplicativos que permitem coletar, com precisão, diversos dados de seus clientes. Além da publicidade baseada nas suas buscas, há vários outros exemplos de como isso afeta sua vida.

Você provavelmente possui um computador ou um smartphone. Certamente, tem acesso à internet e já fez uso de algum serviço da Google ou do Facebook – mesmo que não saiba. Se você usa o WhatsApp, o Instagram, o Gmail ou, simplesmente, entra em alguma página na web que tenha anúncios publicitários, é provável que essas empresas já saibam grande parte de suas informações pessoais. Mas a discussão vai além de companhias registrando seu nome ou número de telefone. As gigantes norte-americanas têm acesso não somente aos lugares em que você passa, às suas conversas, aos seus e-mails, às suas fotos, mas também às suas informações bancárias, à sua saúde, aos seus hábitos de consumo, às suas preferências sexuais e a praticamente toda a sua atividade on-line – e off-line. Inclusive, na maioria das vezes, é você quem permite que essas informações sejam, não apenas coletadas, mas repassadas a outras companhias pelo mundo – e isso é claramente descrito nos termos de adesão a esses serviços.

Mas isso não é tudo. Uma recente descoberta demonstrou que o alcance desse big brother é ainda maior. Há pelo menos 25 rastreadores diferentes nos aplicativos mais populares da Google Play – os quais, em grande parte, trabalham de maneira ‘clandestina’ aos termos apresentados pelas empresas. A lista contém nomes como Uber, Tinder, Skype, Twitter, Spotify e Snapchat. O alerta é do Yale Privacy Lab, iniciativa do Information Society Project, da Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Detalhes da pesquisa, em conjunto com a ONG francesa Exodus Privacy, foram divulgados no final de novembro e revelam “um software clandestino de vigilância que não é conhecido pelos usuários de Android quando o aplicativo é instalado”, segundo a publicação. Os estudos permitiram determinar a origem desses rastreadores e as empresas por trás deles, além das práticas de vigilância que eles acarretam.

“As atividades em rede desses aplicativos cruzam diversos países e preceitos legais. A falta de transparência sobre a coleta, transmissão e processamento de dados levanta um sério problema de privacidade”, afirma o relatório. “Há graves problemas de segurança nos aplicativos, usados por bilhões de pessoas no mundo”, alerta. Revelou-se que mais de 75% dos 300 aplicativos analisados pela Exodus contêm esses rastreadores. Porém, há a possibilidade de que o número seja ainda maior, já que a ferramenta desenvolvida pelos pesquisadores só consegue identificar rastreadores que foram cadastrados anteriormente em seu sistema. “Há toda uma indústria baseada nesses rastreadores. Aplicativos que clamam ser ‘limpos’, podem conter alguns que ainda não conseguimos identificar”.

Entre os rastreadores encontrados, há o “OutBrain”, que permite que informações como o nome do usuário, telefone, contato de e-mail e endereço sejam não apenas coletadas e armazenadas, mas distribuídas para outras empresas. Os pesquisadores não tiveram acesso aos códigos dos aplicativos oferecidos na loja da Apple, porém, expandiram o alerta para outros sistemas operacionais. “Os rastreadores provavelmente estão igualmente escondidos nos aplicativos para iPhone”.

Proteção 

“Os dados são o petróleo da internet”, diz Alexandre Atheniense, que trabalha há 30 anos como advogado especialista em direito digital no Brasil. Ele explica que as práticas de venda e/ou compartilhamento de informações coletadas por aplicativos não são legais no país. “De forma alguma isso é legal, mas não temos uma legislação clara sobre como lidar com esse tipo de situação. Está em tramitação uma lei de proteção de dados, acredito que a partir daí podem surgir critérios mais definidos sobre o tipo de punição aplicável”. O especialista alerta, porém, que mesmo que as respostas legais aos abusos que podem ser cometidos por essas empresas sejam difíceis, ainda há como recorrer. “Precisamos ter uma definição legislativa que determine regras mais específicas quanto à coleta, compartilhamento e registro de dados gerenciados por terceiros. Quando falo isso não quero dizer que se o problema acontecer hoje não há respaldo legal. Há, mas seria muito melhor se tivéssemos uma legislação específica. Entretanto, é sempre bom lembrar que a internet não é uma terra sem lei”, ressalta.

Mesmo que seja praticamente inviável afastar-se dos ambientes virtuais em que há a coleta de dados, há alternativas e maneiras mais conscientes de navegar na web. Alexandre explica que é necessário se manter atento a quais tipos de informação estão sendo compartilhadas. “Há duas formas de coleta de informações as previstas e as que não se tem acesso. É importante tomar cuidado com o que você ativamente informa às empresas na internet. Caso você perceba que algum serviço está requisitando muitas informações, mais do que as absolutamente necessárias para o seu funcionamento, evite compartilhá-las. É um indício de que há muito mais por trás”, alerta.

Um mapa sem privacidade 

Mesmo quando a coleta de dados é informada ao usuário, a questão da privacidade na web é preocupante. Tem-se, por exemplo, explícito nas condutas do Google a gravação, o armazenamento e o uso de informações captadas pelo microfone de smartphones. Usuários podem, inclusive, acessar as gravações feitas pela empresa através da nuvem. Muitas dessas coletas sistemáticas propõem-se, de acordo com as empresas, a utilizar as informações dispostas pelos usuários para que os algoritmos sejam otimizados pelas empresas. Exemplo disso é o aplicativo Google Fotos, que vem sendo cada vez mais “empurrado” para os usuários do Android.

Com a Google tendo acesso irrestrito às fotografias de seus clientes, ela consegue encontrar padrões cada vez mais precisos e, com o tempo, será capaz de cruzar todas as suas informações pessoais – e identificá-lo por completo – apenas com uma foto sua. Essa técnica é chamada de machine learning. Um dos efeitos desse tipo de acúmulo de informações pode ser percebido no uso de aplicativos de mapas, como o Google Maps. Após um intenso trabalho de aprendizagem, o algoritmo da empresa já consegue identificar as rotas mais comuns do usuário e determinar, com precisão, seu local de trabalho, sua residência, etc. O mesmo tende a ocorrer com outros tipos de informações coletadas.

“A Google é um pesadelo quando o assunto é privacidade”, diz o ex-funcionário da empresa Marton Barcza, especialista em marketing e tecnologia. “Quase todo o modelo de negócio da empresa depende da coleta massiva de informações de seus usuários e da monetização desses dados. Eles não apenas fazem isso com usuários de suas plataformas, mas com pessoas que nunca entraram em qualquer serviço da Google e, também, com as que ativamente tentam se manter distante deles”, afirma. “O domínio nas redes de publicidade on-line, nas ferramentas da web, nos buscadores, nos sistemas operacionais mobile, nos navegadores. Tudo isso significa que eles conseguem alcançar quase todas as bordas da internet e coletar informações dos usuários mesmo quando eles não têm a mínima ideia de que isso está acontecendo”, descreve.

O alerta de Marton Barcza converge com o estudo que expôs os rastreadores escondidos. “Mesmo se seguissem à risca suas próprias regras, essas empresas coletariam quantidades inacreditáveis de dados. Porém, há cada vez mais relatos de que eles vão além do que declaram. É quase impossível saber de verdade as formas com que a Google coleta, e o que ela faz com a informação”, frisa.

O computador ‘mui amigo’ 

A indústria de tecnologia vem se mostrando cada vez mais cúmplice do pesadelo de privacidade que seus produtos têm se tornado. As informações coletadas são tão substanciais que já se consegue traçar perfis psicológicos precisos dos usuários apenas com suas interações nas redes sociais. Analisando apenas 150 likes feitos pelo usuário no Facebook, é possível saber mais informações pessoais do que seus familiares. Com apenas 10 curtidas, sabe-se mais do que um colega de trabalho; com 70 curtidas, mais do que um colega de quarto; e, com 300 likes, mais do que seu companheiro amoroso. Esses resultados foram apontados em estudo conjunto entre pesquisadores do Departamento de Psicologia da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e o Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Stanford, nos EUA.

A pesquisa, intitulada “Julgamentos de personalidade feitos por computadores são mais precisos do que aqueles feitos por seres humanos”, coletou informações de 86,2 mil voluntários em um questionário que continha mais de 100 aspectos de suas personalidades em quase 1 mil perguntas distintas. De acordo com os Third quarter 2017 reports, um boletim fiscal do Facebook, há cerca de 1,37 bilhão de usuários ativos diariamente na plataforma e 2,07 bilhões ativos mensalmente. A empresa tem acesso a informações pessoais críticas da grande maioria de seus usuários – e esses nem suspeitam ou não se importam com isso. “O problema é que, para a maioria das pessoas, a privacidade on-line parece um problema distante. Até que essas ilegalidades causem danos reais a quantidades gigantescas de pessoas, infelizmente, não creio que as coisas vão mudar. A conveniência atropelará a responsabilidade até que algo catastrófico aconteça”, lamenta Barcza.

três perguntas para…

Joana Ziller
Professora da UFMG e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Conexões Intermidiáticas (NucCom)

Como a senhora pensa a questão da privacidade na internet hoje? Qual é o panorama em que estamos vivendo?

A privacidade hoje é um artigo de luxo. Não apenas no sentido financeiro. Pouca gente tem privacidade hoje e ela está restrita a uma elite de poder. Restrita a pessoas que não precisam usar celular, pois têm por perto um assessor que pode fazer isso por elas e que, mais importante, tem consciência da vigilância. Abrimos mão da privacidade pelo conforto. Pensar que quando estamos com o celular ou com qualquer outro aparelho conectado não estamos sendo rastreados é ingenuidade.

Como a senhora pensa que essas questões deveriam ser ensinadas ao grande público?

Existem certas coisas na sociedade que são bem parecidas com a questão da privacidade. Coisas que deveríamos saber, mas abrimos mão porque é cômodo. Qual é a quantidade de agrotóxicos que há na nossa comida diária, por exemplo? Sabemos dos males, mas é mais fácil comprar um tomate no supermercado do que plantar o próprio. Com a privacidade é a mesma coisa. Não pensamos muito profundamente no assunto, pois isso exigiria uma mudança de estilo de vida. Certamente, seria interessante que pensássemos mais nisso, que fôssemos educados sobre. Mas, levar isso a sério, de fato, acarretaria mudanças que as pessoas talvez não aceitariam.

Há ações que podem preservar, minimamente, a privacidade do usuário?

Ações mais efetivas exigem conhecimento maior das plataformas e da maneira como a web e os sistemas operacionais funcionam. Não é à toa que as tecnologias que nos rastreiam investem pesado na facilidade de uso de seus serviços. Mas, é importante que haja uma reflexão sobre o que publicamos nas redes sociais. É preciso ter a consciência de que tudo aquilo é público, por mais que os perfis das redes sejam fechados. Manejar bem as permissões que damos aos aplicativos instalados, também, é uma questão importante. Se um app pede autorização para usar o microfone do celular e você consegue perceber que ele não é necessário para que o mesmo funcione, negue o acesso. Entretanto, isso são medidas paliativas. É importante saber que estamos sendo inevitavelmente rastreados.

Os aplicativos instantâneos agora são oficiais. Após um período em testes, o Google anunciou, durante seu evento anual para desenvolvedores, que as ferramentas estão disponíveis para todos. Com isso, praticamente qualquer aplicativo pode funcionar no formato.

Caso você não tenha acompanhado a trajetória do recurso, uma breve explicação. Apresentada em 2016, a ferramenta permite que você utilize um aplicativo sem precisar baixá-lo. Ao acessar algum link na web compatível com os apps instantâneos, você abre um pequeno pedaço do aplicativo necessário para realizar uma tarefa, proporcionando ganho de desempenho e todas as outras vantagens de um app sem a necessidade de instalação prévia. Se o usuário quiser, será possível baixar a versão completa.

A proposta do Instant Apps é simplificar ao máximo o processo de aquisição de novos usuários a aplicativos, o que beneficia demais desenvolvedores e o próprio Google. O benefício vem na forma de não ser direcionado ao Google Play ao tocar em uma URL para baixar um arquivo grande e ficar esperando pela sua instalação. O recurso ainda por cima economiza espaço no armazenamento do celular, já que permite que apenas elementos específicos sejam baixados, e não o app completo.

Em janeiro deste ano, o Google anunciou os primeiros aplicativos compatíveis com o recurso, mas eles ainda eram poucos e estavam em fase de testes. Com a abertura da ferramenta, qualquer aplicativo pode funcionar dessa forma.

No entanto, é importante observar que o Google voltou atrás em algumas das decisões inicialmente anunciadas. A ideia era de que os apps instantâneos estivessem disponíveis em todas as versões do Android a partir da 4.3, mas por enquanto elas só funcionam na versão 6.0 ou superior. A empresa também diz que o suporte à versão 5.0 está a caminho.